Publicado em: 03/10/2025 às 08:05hs
O Brasil atravessa uma crise empresarial sem precedentes. O ano de 2024 marcou um ponto de inflexão para a economia brasileira. Segundo dados da Serasa Experian, o país registrou 2.273 pedidos de recuperação judicial, um crescimento de 61,8% em relação a 2023 e o maior volume desde o início da série histórica em 20061. Esse número alarmante revela não apenas dificuldades pontuais, mas uma crise estrutural que afeta empresas de todos os portes.
A combinação de uma política monetária restritiva, com a taxa Selic em 14,75%, inflação persistente e restrição de crédito criou um ambiente hostil para o setor produtivo. Esse duplo impacto pressiona as margens de lucro e reduz a capacidade de investimento, criando um ciclo vicioso de deterioração financeira.
A inadimplência atingiu níveis críticos, com 7,2 milhões de empresas endividadas, representando 31,6% dos negócios ativos no país. Desse total, 6,8 milhões são Micro e Pequenas Empresas (MPEs), que acumulam dívidas superiores a R$ 141,6 bilhões1. O setor de Serviços lidera esse cenário preocupante, com 52,8% dos negócios inadimplentes, seguido pelo Comércio, com 35%1.
Os dados disponíveis até agosto de 2025 indicam que essa tendência se mantém, com a continuidade dos pedidos de recuperação judicial em patamares elevados. Apesar da queda de 3,5% nos pedidos de falência registrada em 2024, o aumento expressivo das recuperações judiciais demonstra que as empresas buscam alternativas para evitar o fechamento definitivo.
Nesse contexto, o agronegócio, setor que por anos serviu como pilar de sustentação do PIB brasileiro, revelou suas vulnerabilidades e hoje se encontra no epicentro de uma crise financeira que o empurra para os tribunais. Dados da Serasa Experian revelam que 82 empresas relacionadas ao segmento pediram recuperação judicial no primeiro trimestre de 2024, números recordes desde 20182. Embora não represente uma crise generalizada, esses indicadores acendem um alerta sobre a saúde financeira de um dos pilares da economia brasileira.
As agroindústrias de transformação, que utilizam produtos agropecuários como matéria-prima, são as mais afetadas, totalizando 38 empresas em recuperação judicial. Em seguida, aparecem os comércios atacadistas de produtos agropecuários e os negócios de serviços de apoio à agropecuária2. Essa concentração em elos específicos da cadeia produtiva evidencia vulnerabilidades estruturais que vão além de fatores conjunturais.
O aumento recorde nos pedidos de recuperação judicial por parte de produtores e empresas do setor não é um fato isolado, mas o sintoma mais agudo de uma "tempestade perfeita" que combina adversidades climáticas, pressões econômicas e um novo cenário jurídico.
Estamos falando sobre eventos climáticos extremos, como a seca de 2023 e as enchentes devastadoras no Sul em 2024, que dizimaram safras e comprometeram a produção. Simultaneamente, a queda nos preços dos grãos no mercado internacional reduziu drasticamente a receita dos produtores. A essa equação somou-se o elevado custo do financiamento rural, impulsionado pela alta taxa de juros, formando uma tríade que erodiu a capacidade de pagamento do setor e acendeu o alerta em toda a cadeia produtiva, das agroindústrias aos serviços de apoio.
O principal termômetro dessa crise é, sem dúvida, o Banco do Brasil. Responsável por metade do financiamento rural do país, a instituição viu seus números se deteriorarem. Com 808 clientes do agronegócio em recuperação judicial e 20 mil contas em atraso, o dado mais alarmante é que 74% desses devedores eram adimplentes históricos até 20234. Isso desconstrói a narrativa simplista de má gestão e evidencia uma crise sistêmica. O impacto foi direto nos resultados do banco, que registrou uma queda de 40,7% no lucro líquido no primeiro semestre de 2025, forçando uma redução na distribuição de dividendos e uma postura mais agressiva na cobrança de créditos e cooperação com a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para combater práticas abusivas.
A instituição projeta lucro entre R$ 21 e R$ 25 bilhões para 2025, significativamente inferior aos R$ 37,9 bilhões obtidos em 2024, refletindo não apenas a crise do agronegócio, mas também os impactos das novas regras contábeis implementadas pelo Conselho Monetário Nacional.
Para entender por que o campo bate à porta da justiça, é preciso analisar a convergência de fatores que transformou a exceção em uma tendência preocupante.
Coincidindo com essa deterioração econômica, uma mudança legislativa crucial abriu as portas do judiciário para o campo. A Lei 14.112/2020 trouxe significativas alterações à Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2005) e incluiu expressamente o produtor rural pessoa física no regime de reestruturação, pacificando um antigo debate jurídico. Essa alteração, que entrou em vigor em 2021, criou uma ferramenta de proteção patrimonial que, diante da crise, passou a ser vista como uma alternativa viável para milhares de produtores que antes evitavam a complexidade dos processos judiciais.
O resultado foi um aumento exponencial nos pedidos de recuperação judicial no setor rural, contribuindo significativamente para os recordes registrados em 2024.
A Lei 14.112/2020 também estabeleceu regras específicas para o agronegócio, criando cinco novas hipóteses de créditos não sujeitos à recuperação judicial do produtor rural. Essas exclusões visam proteger determinados tipos de credores considerados essenciais para a continuidade da atividade rural, como fornecedores de insumos e prestadores de serviços especializados.
Contudo, a aplicação da nova lei trouxe seus próprios desafios. O aumento exponencial de pedidos gerou tensões entre credores e devedores, com instituições como o Banco do Brasil alegando o uso da recuperação judicial como estratégia para reduzir dívidas, e não como último recurso para a sobrevivê
,0ncia do negócio. A complexidade intrínseca à atividade rural, com sua sazonalidade e dependência climática, torna a elaboração de planos de recuperação viáveis uma tarefa árdua. Essa controvérsia levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a avaliar critérios mais rigorosos para a concessão dos pedidos, um movimento que pode gerar um retrocesso na proteção legal recém-conquistada pelo produtor.
A crise no agronegócio, portanto, é um fenômeno multifacetado que transcende uma simples questão setorial, ameaçando a estabilidade do sistema financeiro. Superá-la exigirá mais do que ajustes na política econômica. Será preciso garantir a aplicação equilibrada da legislação de recuperação de empresas, resguardando seus objetivos sem permitir abusos. A saúde do agronegócio é vital para a economia brasileira, e restaurar sua sustentabilidade é um desafio que demanda uma abordagem integrada entre políticas públicas, o sistema de justiça e o próprio setor.
Vitor Ferrari é advogado especialista em Recuperação Judicial e sócio do escritório Mazzucco&Mello Advogados.
Fonte: Growth Comunicações
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