Publicado em: 10/11/2025 às 08:00hs
O agronegócio brasileiro constitui um dos pilares fundamentais da economia nacional, exercendo papel de destaque na geração de empregos, no equilíbrio da balança comercial e na garantia do abastecimento alimentar interno. Essa relevância, no entanto, está diretamente vinculada à disponibilidade de recursos financeiros que viabilizem todas as etapas da cadeia produtiva, desde o preparo do solo até a comercialização da safra.
Nesse cenário, o crédito rural exerce função estratégica ao permitir que os produtores acessem insumos, tecnologia e infraestrutura indispensáveis à produtividade e à competitividade no campo. Instituído como política pública de fomento, o crédito rural é desenhado para atender às particularidades do setor, considerando fatores como a sazonalidade, os riscos climáticos e a dinâmica específica da produção agropecuária.
Além de sua relevância econômica, o crédito rural também cumpre importante papel social, ao promover a inclusão produtiva de pequenos e médios produtores, fortalecer a economia rural e contribuir para a redução das desigualdades regionais.
Juridicamente, o crédito rural se formaliza por meio de instrumentos contratuais que conferem segurança e previsibilidade às relações obrigacionais. Entre os mais utilizados, destacam-se a Cédula de Produto Rural (CPR), que obriga o produtor à entrega futura da produção, podendo ser física ou financeira; a Cédula de Crédito Rural (CCR), voltada ao custeio e ao investimento com garantias pessoais ou reais; além dos contratos que envolvem garantias típicas do setor, como o penhor agrícola, a alienação fiduciária de bens móveis e o patrimônio rural em afetação. Embora essas garantias visem conferir maior estabilidade às operações, sua execução judicial nem sempre é célere ou eficaz, o que pode comprometer a recuperação do crédito concedido.
E, mais do que um suporte financeiro individual, o crédito rural atua como elemento integrador de toda a cadeia do agronegócio, viabilizando o fluxo de recursos entre o campo e o mercado, bem como garantindo eficiência tanto na produção, quanto na comercialização.
A ausência desse instrumento torna o produtor rural vulnerável à escassez de capital de giro, à informalidade nas transações e à instabilidade econômica, comprometendo a sustentabilidade do setor como um todo.
Nos últimos anos, contudo, o modelo de financiamento rural tem enfrentado crescente pressão em razão do aumento da inadimplência. A combinação de eventos climáticos extremos — como secas, enchentes e geadas — com instabilidades econômicas, volatilidade cambial e elevação generalizada dos custos operacionais tem comprometido severamente a capacidade de pagamento dos produtores. O aumento dos preços de insumos, energia, combustíveis e maquinário, aliado à redução das margens de lucro, tem agravado significativamente o risco de inadimplemento em larga escala.
E esse ambiente de instabilidade gera impactos profundos sobre os credores institucionais. Bancos públicos e privados, por exemplo, são obrigados a reforçar provisões contábeis e a reavaliar a concessão de crédito, diante de restrições de liquidez e aumento da inadimplência em suas carteiras. Cooperativas de crédito, por sua vez, com atuação muitas vezes regionalizada e exposição mais intensa ao setor, convivem com riscos sistêmicos que ameaçam sua própria sustentabilidade.
Já as empresas do agronegócio que operam com antecipação de insumos, CPRs ou por meio de operações de barter — modalidade na qual o produtor recebe insumos com o compromisso de quitá-los com parte da produção futura — enfrentam perdas significativas diante do inadimplemento estratégico, da quebra de safra e da desvalorização dos ativos oferecidos em garantia. A ruptura dessa cadeia compromete não apenas o equilíbrio econômico do setor, mas também a confiança nas operações de crédito agrícola.
Com a redução da eficácia das soluções extrajudiciais, observa-se a crescente judicialização das dívidas rurais. A cobrança judicial de créditos garantidos por CPRs, CCRs ou outros instrumentos contratuais tem se tornado frequente, especialmente em regiões com alta concentração de inadimplência.
Nessa seara, os credores enfrentam obstáculos relevantes, como a dificuldade de localização de bens penhoráveis, a informalidade na constituição de ativos rurais e disputas sobre cláusulas contratuais e validade das garantias. Além disso, multiplicam-se ações revisionais fundadas em teorias como a onerosidade excessiva, caso fortuito e força maior, que visam à revisão ou à inexigibilidade das obrigações pactuadas.
A recuperação de crédito no meio rural brasileiro apresenta, assim, uma série de especificidades que impõem aos credores e operadores do direito desafios jurídicos complexos. Embora o produtor rural seja um agente econômico fundamental, sua heterogeneidade e o conjunto de proteções legais que o cercam tornam a execução judicial um processo repleto de entraves.
O universo dos produtores rurais é composto por perfis diversos — desde pequenos agricultores familiares até grandes empresários —, cada qual inserido em contextos econômicos, jurídicos e patrimoniais distintos. Essa diversidade não apenas dificulta a aplicação de estratégias processuais uniformes, como também impõe ao credor a necessidade de compreender, com precisão, o regime jurídico aplicável ao caso concreto.
Apesar da existência de garantias reais em muitos contratos, a recuperação efetiva do crédito esbarra em obstáculos jurídicos relevantes, dentre os quais se destaca a presunção de impenhorabilidade de determinados bens vinculados à atividade agrícola. Em diversos casos, mesmo os bens dados em garantia acabam sendo considerados impenhoráveis, sob o argumento de que sua função é essencial à sobrevivência da família e à continuidade da produção. Muitas dessas decisões se fundamentam no artigo 5º, inciso XXVI da Constituição Federal, que assegura a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família. Trata-se de proteção de natureza social e econômica, voltada à preservação do sustento familiar e à promoção da produtividade agrícola.
Nesse contexto, ganha relevância a análise da configuração da atividade em regime de economia familiar, conforme definido pela Lei nº 11.326/2006. A informalidade na constituição de personalidade jurídica e a sobreposição entre o patrimônio pessoal e os meios de produção reforçam os argumentos em prol da impenhorabilidade. No entanto, é possível enfrentar essas barreiras com estratégias jurídicas adequadas. Uma delas consiste na responsabilização patrimonial da família, quando restar demonstrada a ocorrência de fraude, simulação de atividade rural ou blindagem patrimonial dolosa.
A alegação de regime de economia familiar, quando utilizada de má-fé para frustrar a satisfação do crédito, pode ser desconsiderada judicialmente, desde que comprovada a intenção de lesar credores. Essa responsabilização, contudo, exige análise criteriosa do contexto fático e probatório de cada caso.
Outra estratégia relevante diz respeito à análise crítica das alegações de impenhorabilidade. Em decisão paradigmática no julgamento do Tema Repetitivo 1.234, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o direito à impenhorabilidade da pequena propriedade rural não é absoluto. Para sua aplicação, é imprescindível que o devedor comprove que o imóvel é efetivamente explorado pela família, com mão de obra própria e voltado à subsistência. A ausência dessa comprovação permite ao credor pleitear a penhora do bem, afastando a proteção constitucional. Esse precedente reforça a tese de que a impenhorabilidade não pode ser utilizada como escudo incondicional contra a execução patrimonial.
Diante de todo esse panorama, constata-se que a recuperação de crédito no agronegócio, especialmente frente ao atual cenário de inadimplemento e judicialização crescente, exige do operador do direito não apenas domínio técnico dos instrumentos contratuais e garantias, mas também uma leitura estratégica das peculiaridades do setor rural brasileiro. A heterogeneidade dos produtores, a informalidade recorrente, as proteções constitucionais e a multiplicidade de estruturas patrimoniais impõem desafios que não devem ser encarados como barreiras intransponíveis, mas sim como elementos que demandam abordagem jurídica especializada. Somente assim será possível viabilizar a recuperação do crédito, assegurar segurança jurídica aos credores e preservar a funcionalidade do sistema de crédito rural no país.
Fonte: Growth Comunicação
◄ Leia outros artigos