Turismo Rural

O turismo em xeque

Estudo provoca reflexões sobre a produção e a comunicação do turismo na contemporaneidade


Publicado em: 02/09/2013 às 15:40hs

O turismo em xeque

Uma ampla leitura crítica das relações de poder que existem no assunto ‘turismo’ em seus âmbitos políticos, econômicos, publicitários, sociais, psicológicos e ecológicos é a linha condutora de pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aplicada Interunidades (Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ e Centro de Energia Nuclear na Agricultura – CENA) com o título “Espetáculos e Invisibilidades do Discurso Legitimador do Turismo”. Ao abrir o tema para o turismo em geral, o autor contraria a proposta dos estudiosos que vão se especializando e fechando mais seus objetos de estudos. O objetivo da tese, explica o autor, Helio Hintze, é o de propor e estimular reflexões críticas sobre a produção discursiva no turismo da contemporaneidade, ou seja, sobre a forma como o turismo vem sendo construído por diversos tipos de discursos elaborados por diferentes agentes sociais.

O turismo é apresentado como manifestação da modernidade, do Ocidente Eurocêntrico e da cultura de consumo contemporânea. Diante dessa perspectiva, considera-se que a expansão do turismo traz as marcas dessas três manifestações, transformando os mais diversos temas em entes econômicos para um consumo cada vez mais veloz e fluído. Esse processo, chamado pelo autor de ‘comodificação’, traz danosas consequências aos envolvidos na exploração do turismo, turistas e aos que ganham a vida trabalhando, pois todos têm suas relações permeadas pelo mercado.

Desenvolvido com vasto material empírico, o trabalho reuniu e analisou os comunicados dos principais agentes sociais que atuam como enunciadores hegemônicos do turismo: o World Travel and Tourism Council (WTTC), a Organização Mundial do Turismo (OMT) e o Ministério do Turismo (MTUR). Por meio da análise crítica do discurso de artigos, textos, leis, notícias de jornais, revistas, blogs e sites, além de livros, artigos científicos, teses e dissertações a tese considerou dois importantes enunciadores do que é o turismo – a mídia e a academia.

Enunciadores hegemônicos – “Em nível global, o WTTC e a OMT concentram todo o poder de fogo que lhes é atribuído pelos agentes de mercado que representam, na legitimação do turismo como única forma inteligente de lazer, de crescimento econômico e de geração de empregos”, revela Hintze. “Em nível nacional, o MTUR confirma essa legitimação produzindo o Brasil como um lugar naturalmente turístico; a mídia produz toda forma de estereótipos que devem ser perseguidos pelos turistas; e, por fim, boa parte da academia reforça essas ideias sem o nível de criticidade esperado, reproduzindo assim a legitimação”, complementa.

Para o pesquisador, esses agentes sociais hegemônicos participam fortemente do processo de produção de subjetividade capitalista, operando para a confirmação do Estado Capitalista Neoliberal como algo legítimo e inquestionável. No estudo, esse processo recebe o nome de produção de ‘Espetáculos’. Já as questões importantes a respeito das mazelas que a atividade de mercado em geral traz, como por exemplo, o nivelamento de tudo à ideia de recurso turístico para a apropriação capitalista, a busca incessante de lucro, as injustas disputas entre oferta e demanda, a produção de descartabilidade de pessoas e lugares, entre outros problemas graves, são invisibilizados. “Assim produzido e comunicado, o turismo tem apresentado problemas com racismos, sexismos e etnocentrismos. Um exemplo que aparece nesse sentido é a convicção de exploração turística dos índios. Ao produzí-los como atrativos turísticos, essa produção oculta outras condições históricas e sociais de violência contra esses povos ao longo de cinco séculos neste país. Toda essa violência é produzida como invisível”, diz o autor que denomina essa dinâmica como Espetáculos e Invisibilidades de produção de “clichês turísticos”.

Segundo Hintze, a principal contribuição da tese é procurar colocar em xeque todo tipo de afirmações estabelecidas como verdades inequívocas produzidas pelo Estado/Mercado Neoliberal, como, por exemplo, o papel da ciência como o de pesquisa desinteressada. “Esse é um mito que precisa ser combatido. Muitos cientistas que estudam o turismo tem um compromisso com o mercado e/ou ignoram isso, ou trabalham mesmo para legitimar a prática do mercado. Enfim, a tese é organizada pela desconstrução desse tipo de mitos”, assegura o pesquisador.

Poder Público – O estudo busca compreender os usos e funções do discurso produzido para a legitimação do turismo. O discurso da natural vocação turística do Brasil organizado pelo MTUR é superficialmente produzido a partir das ideias de diversidade étnica, democracia racial e hospitalidade. Essas três características seriam os grandes diferenciais que o “produto turístico Brasil” tem em relação a seus concorrentes, além, é claro, de praias, florestas e outros atrativos naturais. “A hipótese que defendo vai em direção oposta e afirma que o discurso que quer fazer do Brasil um produto turístico é construído de maneira a produzir clichês turísticos, estereotipar a diversidade e empobrecer as possibilidades de experiências, contatos e trocas com o outro. Ela esvazia a brasilidade ao querer produzi-la como atrativo turístico. Para citar um exemplo, a produção e a comunicação do turismo no Brasil são vistas, antes, como fatores para a reposição do mito da democracia racial no país”.

Mídia e Racismo – A partir da análise de publicidades de revistas especializadas em turismo constatou-se uma quase exclusividade na representação do turista como sendo branco. “Nos discursos da mídia especializada, no caso dos negros, seu papel como turista é mínimo, no entanto, algumas vezes as aparições de negros na mídia os registram ora como servidores do turismo; ora como povos calorosos, exóticos, erotizados, incultos, lindos e primitivos; ora como alegres, bons de bola, de samba, cheios de crendices. Serão estas as únicas condições simbólicas dessas pessoas? Serão essas as únicas condições da realidade dessas pessoas?”, indaga o autor.

Para o pesquisador, a produção do outro por aqueles que exploram o turismo é estereotipada e empobrecedora. “Os clichês elaborados pela mídia mais reforçam problemas que apresentam possibilidades de sua superação, mais limitam a compreensão que possibilitam o entendimento e o contato. Ela não discute efetivamente os problemas do turismo, antes, apresenta apenas aventura e glamour, gerando novas expectativas e desejos de consumo. As pretensas críticas da mídia não atingem o âmago de importantes questões, apenas reforçam desigualdades e injustiças”, conclui.

Enfim, o texto de Hintze instiga outros estudiosos a analisarem os enunciadores do turismo com mais profundidade, procurando ultrapassar as condições atuais de análise. Ele afirma que não foi possível resolver todos os problemas no estudo apresentado e que assuntos foram apontados, mas não puderam ser devidamente aprofundados. Assegura, ainda, que nesse âmbito, o turismo (o Estado Neoliberal, o mercado, a produção discursiva, o planejamento, a economia, entre tantos outros possíveis objetos de análise) deve ser encarado como objeto de estudos multidisciplinar privilegiado por parte das ciências sociais e das humanidades para a compreensão crítica da atuação do Estado neoliberal e do mercado na contemporaneidade. Assim, os estudiosos da Sociologia, da Ecologia, os filósofos, historiadores e antropólogos, aqueles que se dedicam às Ciências Políticas e Jurídicas, etc devem empreender estudos críticos ao tema em questão. “A ideia de turismo como ciência autônoma deve ser fortemente combatida, pois é uma estratégia falaciosa do neoliberalismo, de seus agentes, e de uma estrutura legitimadora para que o potencial crítico das ciências sociais e das demais ciências seja neutralizado e, assim, não incomode os desígnios daqueles que só tem a ganhar com a exploração do mercado e suas injustiças”, finaliza.

Essa tese foi defendida no mês de agosto na ESALQ, para obtenção do título de doutor em Ciências – área de concentração em Ecologia Aplicada. Helio Hintze foi orientado pelo professor Antonio Ribeiro de Almeida Junior, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia (LES). O pesquisador é Especialista em Ecoturismo pelo SENAC, mestre em Ecologia Aplicada e doutor em Ciências, ambos pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (USP/ESALQ).

Fonte: Assessoria de Comunicação USP ESALQ

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