Biotecnologia

O que o camelo, a beterraba e o tambaqui têm em comum?


Publicado em: 14/08/2009 às 09:23hs

...

Apesar da pergunta do título nos remeter àquelas adivinhações de infância, onde não raramente a resposta seria algo superficial como a letra “A”, a pergunta em si tem uma resposta um tanto quanto mais profunda: uma pequena molécula que raramente passa despercebida pelo nosso sentido olfativo, que possui o singelo nome de Geosmina. A palavra geosmina vem do grego, e significa “aroma de terra”. Ela é responsável, em parte, por aquele cheiro que muitas pessoas acham extremamente agradável, quando uma chuva começa a cair sobre um local onde previamente houve uma relativa estiagem. Em alguns locais do Brasil é também conhecido como “cheiro de terra molhada”, ou mesmo “cheiro de chuva”.

Essa molécula é produzida por diversos microrganismos presentes em abundância no solo e na água. Dentre seus principais produtores estão as bactérias, principalmente as actinobactérias (por exemplo, do gênero Streptomyces). Essas bactérias possuem um papel incalculável no campo das ciências médicas. Esse único grupo de bactérias produz mais de dois terços dos antibióticos naturais clinicamente usados pela medicina atual (e.g. estreptomicina, neomicina, rifamicina, cloranfenicol, tetraciclina, entre outros). É uma fonte importantíssima de compostos antibacterianos e antifúngicos de ocorrência natural, bem como fonte de drogas anticancerígenas e imunossupressoras.

Outro grupo produtor de geosmina são as cianobactérias (também chamadas, erroneamente, de algas azuis), que por sua vez, são bactérias fotossintetizantes presentes ubiquamente nos solos e nas águas dos mais variados ambientes. Algumas espécies são fixadoras de nitrogênio atmosférico, podendo assim ter sucesso reprodutivo em locais onde esse nutriente torna limitante o crescimento de outros organismos. São os principais produtores de geosmina nas águas de superfície.

Nosso sentido pode detectar a geosmina em quantidades muito pequenas quando presentes na água, na ordem de 10 a 15 nanogramas por litro. Isso equivale á percepção de apenas 0,00000001 g da substância diluída em 1 litro de água. Portanto, em determinadas situações essa molécula pode constituir um problema em produtos de consumo humano. Além do gosto de terra à água, a geosmina também “empresta” seu gosto ao vinho, à polpa das frutas e vegetais, e mesmo à carne dos peixes, chegando até a torná-los completamente desagradáveis ao consumo. Em termos gustativos, os limites de percepção da geosmina na carne do peixe variam de 100 a 250 nanogramas por kilograma de carne de peixe.

Durante muito tempo se perguntou qual seria a função biológica da geosmina e apenas recentemente uma pista consistente foi encontrada: o aroma característico da geosmina normalmente ocorre quando existe umidade envolvida, e descobriu-se que os camelos podem detectar no ar a fragrância deste metabólito a “léguas” de distância. Por incrível que pareça, a importância biológica da presença dessa molécula nos microrganismos pode estar justificada nos camelos, pois, quando no deserto, a bactéria Streptomyces libera geosmina no ar em terreno úmido, esta pode ser detectada pelos receptores olfativos dos camelos, direcionando-os para a água mesmo quando os oásis estão a mais de 80Km de distância. Ou seja, se por um lado a sobrevivência dos camelos pode ter implicação na existência da molécula de geosmina, essa parece ser a estratégia adotada pela bactéria, juntamente com a contrapartida dos camelos, para dispersar seus esporos. Assim, enquanto os camelos saciam sua sede, disseminam os esporos bacterianos e os carregam consigo pra onde quer que sigam, auxiliando na sua propagação.

Além dos camelos, hoje se sabe que outros organismos, como alguns vermes e insetos, também são atraídos pela geosmina. Pesquisadores da área da botânica descobriram a presença de geosmina em flores de cactáceas (Rebutia marsoneri e Dolichothele sphaerica), e também há registros de moléculas similares em uma flor da Amazônia. Acredita-se que a presença da geosmina estaria indicando, falsamente, aos incautos insetos de que tais flores possuem água, convidando-os a se aproximar e, assim, favorecendo sua eventual polinização.

Em relação à beterraba, de nome científico Beta vulgaris, é notório o leve gosto a terra que essa hortaliça apresenta. Ao longo da evolução das cultivares desta hortaliça com interesse na alimentação humana, as variedades com menos gosto a terra foram lentamente sendo selecionadas, e hoje em dia é enorme a diferença da concentração de geosmina presente nas atuais beterrabas comerciais, com sabores mais aceitáveis aos consumidores, em relação às variedades nativas não-melhoradas. Até hoje os pesquisadores ainda não têm certeza se a geosmina presente na planta provém do metabolismo da própria beterraba ou se é sintetizada por microrganismos simbiontes do solo, e captada pela beterraba durante sua maturação. A razão biológica da presença e/ou biossíntese dessa molécula na beterraba ainda continua a ser um mistério para os pesquisadores.

Por fim, a razão da presença do tambaqui no título: a captação da geosmina presente na água pelos peixes é um processo passivo, ocorrendo através das brânquias, do trato digestivo e da pele. A captação pela pele, principalmente em peixes de escamas, é extremamente baixa quando comparada à pelas brânquias e pelo trato digestivo, então, para fins de simplificação de modelo, pode ser considerada nula. A importância relativa da captação da geosmina pelas brânquias ou pelo trato digestivo está relacionada ao chamado “Coeficiente de Partição Octanol/Água” (conhecido pela sigla Kow). O Kow é um coeficiente calculado de acordo com a solubilidade da molécula. Em termos práticos, este coeficiente descreve a afinidade da molécula em relação a um meio “gorduroso” e um meio “aquoso”, e com isso estima-se a difusão dessa molécula no corpo de um organismo. Em peixes, a captação passiva de moléculas pelas brânquias é dominante quando o composto apresenta um Kow menor que 6,0. Kow acima desse valor tem maior importância de captação pelo trato digestivo. A geosmina apresenta um Kow de 3,57, portanto sua entrada, no organismo do peixe, ocorre quase exclusivamente via branquial.

Sendo assim, um modelo simplificado da cinética de captação (entrada da molécula no corpo do peixe) e depuração (saída da molécula) da geosmina considera o peixe como um compartimento único, contendo uma mistura de 3 fases: sólida, líquida e lipídica (gordura). Assumindo-se que a fase sólida não absorve a geosmina, então a presença deste composto no peixe é resultado da proporção de água e lipídeos que ele possui, distribuídos de forma diferenciada nos seus vários tecidos. Assim, quando um tambaqui se encontra numa água com geosmina, a concentração de geosmina na fase aquosa do peixe será exatamente igual à concentração da geosmina na água que o circunda (estado de equilíbrio). Porém a concentração na fase lipídica do peixe será essa concentração multiplicada pelo Kow da geosmina. Então, a concentração de geosmina no peixe será maior quanto maior for seu teor de gordura. Ou seja, peixes “gordos” (teor de gordura corporal acima de 8%) terão maior concentração de geosmina que peixes “magros”.

O tambaqui é uma espécie considerada gorda, com teores de gordura muscular de cerca de 10 a 12%, além de ser extremamente rústica, tolerando baixos teores de oxigênio dissolvido na água. Têm alimentação onívora, baseada principalmente no consumo de frutas, sementes e pequenos organismos aquáticos, como insetos e moluscos, e aceita muito bem as rações comerciais. Foi adaptado com muito sucesso ao cultivo em cativeiro. É um peixe muito apreciado na culinária amazônica, e possui excelente sabor, consistência e coloração de carne, pouca presença de espinhas e facilidade para se obter filés.

Normalmente, na criação comercial de tambaqui em viveiro escavado de fundo de argila, antes do enchimento do viveiro se faz a aplicação de calcário para correção do pH do solo, além da adubação química para facilitar a produtividade primária. Enquanto uma atividade contribui para a eliminação de um tipo de organismos produtores de geosmina (bactérias acidófilas do solo), a outra estimula o crescimento de outro tipo de organismos produtores de geosmina (bactérias aquáticas fotossintetizantes e microalgas). Nos EUA os prejuízos com percepções de gosto a terra em peixes são da ordem de U$ 50 milhões por ano. No cálculo desse prejuízo entra o atraso no cronograma da despesca, a redução no crescimento e na eficiência alimentar, a diminuição de peso e o aumento na mortalidade em função da queda na qualidade da água e da ocorrência de doenças com a retenção dos peixes nos viveiros até o gosto indesejável sumir ou diminuir. O que não entra no cálculo são os prejuízos adicionais indiretos, que podem surgir da aversão dos consumidores ao peixe proveniente de pisciculturas, quando peixes com mau sabor são colocados no mercado.

A criação de tambaquis na Região Norte do Brasil vem crescendo rapidamente, e em alguns estados essa espécie representa mais de 90% de sua produção em cativeiro. Além da piscicultura familiar há também o surgimento de investimentos de grandes empresários, interessados na alta rentabilidade dessa espécie, como Taxas Internas de Retorno (TIR) acima de 40% por safra e Período de Recuperação do Capital (PRC) abaixo dos 3 anos. Portanto, para que todo o potencial da piscicultura do tambaqui na Região Norte possa ser aproveitado, é fundamental que problemas como estes façam parte das preocupações habituais dos produtores, fomentadores e pesquisadores da área. Em muitos países, são realizados testes prévios sensoriais, para análise da qualidade do sabor do peixe em alguns exemplares dos viveiros antes da despesca. No Brasil este costume é ainda incipiente, porém com a nítida expansão da produção brasileira do pescado, e o objetivo de atender não somente ao mercado interno, mas também ao exigente mercado externo, esse problema aparentemente tão distante da nossa realidade pode rapidamente se tornar um ponto focal imediato.

Bibliografia Consultada

  1. Arbeláez-Rojas. G.A., Fracalossi, D.M. & Fim, J.D.I. Composição corporal de tambaqui, Colossoma macropomum, e matrinxã, Brycon cephalus, em sistemas de cultivo intensivo, em igarapé, e semi-intensivo, em viveiros. Revista Brasileira de Zootecnia, 31 (3): 1059-1069, 2002.
  2. Gerritsen, V.B. The earth’s perfume. Protein Spotlight, 35, June 2003.
  3. Howgate, P. Tainting of farmed fish by geosmin and 2-methyl-iso-borneol: a review of sensory aspects and of uptake/depuration. Aquaculture, 234: 155-181, 2004.
  4. Izel, A.C.U. & Melo, L.A.S. Criação de tambaqui (Colossoma macropomum) em tanques escavados no Estado do Amazonas. Manaus – Embrapa Amazônia Ocidental, 20p. (Série Documentos, 32).
  5. Kubbitza, F. Off-flavor nos peixes cultivados. Panorama da Aquicultura, jul/ago, 2004.
  6. Lu, G., Edwards, C.G., Fellman, J.K., Mattinson, D.S. & Navazio, J. Biosynthetic origin of geosmin in red beets (Beta vulgaris L.). Journal of Agricultural and Food Chemistry, 51(4): 1026-1029, 2003.
  7. Ritter, S.K. How nature makes earth aroma: unusual biosynthesis of geosmin, a terpene responsible for pleasant scent of moist soil, is deciphered. Chemical & Engineering News, 24, p.19, 2007.
  8. Simons, P. Camels act on a hump. The Guardian, March 6th 2003, http://www.guardian.co.uk/online/science/ story/0,12450,907976,00.html

Dr. Alexandre Matthiensen, Pesquisador Embrapa Roraima

Fonte: Embrapa Roraima

◄ Leia outros artigos