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Donald Hess e os vinhos do fim do mundo

Mais do que região de procedência, safra e informações técnicas sobre sua elaboração, há vinhos que deveriam vir com um histórico do que existe por trás deles


Publicado em: 09/08/2013 às 07:30hs

Donald Hess e os vinhos do fim do mundo

Isso com certeza contribuiria para que recebessem uma atenção proporcionalmente maior do que a (mera) boa impressão que eles nos causam quando os bebemos. No fundo, o que precede a abertura da garrafa tem grande participação na noção de prazer que temos ao provar um vinho. A sensação que ele provoca é diferente e é justamente essa a definição de um bom vinho: mexe com a emoção.

Imagine, então, um vinho elaborado num lugar inóspito, de difícil acesso e longe de tudo - dificuldade para receber insumos e mais ainda para fazer as garrafas chegarem aos centros de consumo -, com água escassa e sem linhas de transmissão de energia elétrica. Pergunte também porque alguém se interessaria em desenvolver um projeto por lá, tendo todas as condições para fazê-lo num lugar com prestígio e dispondo de todas as facilidades.

Quem pode responder é Donald Hess, empresário suíço e um dos maiores colecionadores de arte contemporânea do planeta, que foi se desfazendo de todos os seus negócios - entre eles uma tradicional e bem conceituada engarrafadora de água mineral da Suíça, a Valser Mineralquellen - para se dedicar ao setor de vinhos. Sua mais recente (ousada e fascinante) aventura na área foi em Salta, província no extremo norte da Argentina, com vinhedos que chegam a mais de 3 mil metros de altitude. É de lá que vêm o Colomé, o Amalaya e o Altura Máxima, projetos que visitei na semana passada a convite da Bodegas Colomé e da importadora Decanter, que traz os vinhos do grupo Hess para o Brasil.

Donald Hess até que tinha um pé no meio vitivinícola já que entre os bens herdados com a morte de seu pai em 1957, quando tinha apenas 20 anos, estava uma propriedade perto de Genebra, que ele logo se desfez ao se dar conta que, à parte um belo castelo, os vinhos eram ruins. A rigor, como quarta geração de um grupo fundado em 1844, Hess possuía mesmo uma pequena cervejaria e um hotel em Tânger, no Marrocos. O setor de cervejas também não lhe atraía, seja pelas instalações arcaicas e a qualidade que de lá saia, quanto à necessidade de enfrentar um cartel poderoso formado pelos grandes da área. O então jovem suíço foi diminuindo essa atividade até se decidir, quatro anos mais tarde, a entrar no setor de água mineral, o que viria a ser uma decisão acertada.

O hotel em Tânger, este sim, lhe atraia, fazendo com que dedicasse duas semanas por mês para incrementar o negócio. Ao chegar a cinco prestigiadas unidades e comandar 1.200 funcionários, Donald Hess começou receber sinais que o rei do Marrocos estava incomodado com a concorrência que eles representavam aos congêneres pertencentes ao reino, na verdade, ao próprio, monarca absoluto. Em 1978, após três anos de cansativas negociações que envolviam também a permissão para poder levar consigo o dinheiro da venda, Hess cedeu ao reinado suas propriedades no país.

Com o que arrecadara na transação e já tendo vitoriosa experiência em água mineral, o suíço, já com 41 anos de idade, foi verificar a possibilidade de atacar esse segmento nos Estados Unidos, na esteira do que a francesa Perrier acabara de fazer. As três semanas em que lá passou e as visitas a 36 fontes credenciadas o decepcionaram. Segundo ele a água era amarga e os americanos só queriam saber se elas continham sal e calorias. Em vias de voltar para casa, Donald Hess foi com o diretor que o acompanhava almoçar em um bom restaurante e, não tendo nenhuma informação sobre a produção local de vinhos, pediu que lhe servissem o melhor branco e o melhor tinto da carta. Foi o estalo.

Acostumado com o padrão que bebia no Marrocos, Hess ficou agradavelmente surpreso, e disse a seu companheiro de mesa que queria entrar no ramo de vinhos. A despeito de ser desencorajado - "é um hobby que vai custar caro" -, e de não entender nada sobre o assunto, ele, intuitivamente, achou que devia ir em frente. Detalhista e obstinado, voltou à Califórnia duas vezes só para observar os vinhedos e falar com quem lá trabalhava, desde o homem do campo ao dono da vinícola, passando pelo feitor e pelo enólogo. Pelo que viu e confiando em sua intuição, o início do que seria a Hess Collection se deu na até então pouco conhecida Mount Veeder, zona montanhosa do Napa Valley, que pela altitude mais elevada e pela brisa que recebe da Baía de San Pablo, ao sul, permite chardonnays e cabernets com bom frescor.

A ideia inicial de Donald Hess era ser apenas produtor de uvas e não se ocupar da vinificação, porém logo percebeu o risco de, por excesso de oferta, não conseguir vende-las, ficando com o mico na mão. Do aluguel de uma pequena cantina de vinificação ele partiu para a compra de uma vinícola histórica e mais terras em várias sub-regiões da Califórnia, compondo um portfolio que inclui, hoje, além da Hess Collection, a Artezin, a Sequana e a McPhail.

A experiência positiva nos Estados Unidos fez com que o agora empresário de sucesso no vinho pensasse em novas aventuras. Numa primeira visita à África do Sul, ainda durante a vigência do apartheid no país, nenhuma vinícola lhe encantou. Dois anos depois, em 1995, Hess recebeu as melhores referências e a informação de que Glen Carlou, um produtor bem conceituado situado na prestigiada região de Paarl, estaria à venda. Ele não pestanejou e logo negociou a compra de uma participação de 50% no negócio, então pequeno, da ordem de 6 mil caixas. Com mais alguns anos, Walter Finlayson, o fundador e que dividia com um dos filhos, David, a direção técnica da vinícola, resolveu se retirar, vendendo a Donald Hess, em 2001, o restante de suas ações. Na parte operacional não houve mudanças, com David Finlayson e a mesma equipe de enólogos no comando garantindo continuidade no estilo da casa, que produz atualmente quase 70 mil caixas. Uma tacada mais forte do suíço foi em 2002, quando adquiriu quase 90% das ações da Peter Lehmann, uma das mais importantes vinícolas australianas, passando para trás ninguém menos que a poderosa multinacional Allied Domecq.

Nesse meio tempo, Hess andou circulando pela América do Sul, em princípio pelos contatos que mantinha com a Norton, bodega de Mendoza que seu grupo representava nos Estados Unidos. Já que estava por lá.... A rigor, ele analisou a possibilidade de se instalar também no Chile, desinteressando-se por considerar os vinhos chilenos "muito internacionais". Preferiu a Argentina.

Donald Hess, entretanto, não gosta do óbvio, como ele me disse textualmente certa vez, oito anos atrás: "Não sou cordeiro, não gosto de ir para onde estão todos os outros". Também vale para Mendoza, província que detém 70% dos vinhedos do país. Foi o que o levou, por volta de 1997, a Salta, que tinha clima e paisagem diferenciados e onde o conhecido "flying winemaker" Michel Rolland, fazia um bom vinho com a tradicional família Etchart, em Cafayate - foi o primeiro trabalho de Rolland na Argentina, em 1988.

A decisão de investir em Salta veio, com efeito, a partir do momento em que o suíço provou um Colomé, vinho tinto elaborado por Raúl Dávalos na bodega que um de seus antepassados fundara em 1831, o que fazia dela a mais antiga em atividade no país. Por duas vezes, em fevereiro de anos seguidos, única época em que o rio enche - a maior parte do tempo quase nem tem água -, Hess tentou chegar à vinícola, distante cerca de quatro horas da cidade de Salta em estrada de terra cortando as encostas íngremes das montanhas e vales da região. Também deram em nada as tentativas de comprar a bodega ou se associar a Dávalos, que, dizem, chegou a se arrepender na hora de assinar o compromisso.

Hess decidiu, então, partir do zero, andando para todo lado à procura de uma área apropriada para implantar um vinhedo, o que significa encontrar água, o bem mais precioso daquele canto da Argentina. Entre as tantas histórias que circulam pela região envolvendo Donald Hess, consta que o suíço ficou perambulando com um anel pendurado numa cordinha até que o pêndulo improvisado deu sinal. Seja como for, o fato é que a primeira propriedade de Hess em Salta, a finca El Arenal, situada a noroeste da cidade histórica de Cachi, a 2.700 metros de altitude, está assentada sobre um rio subterrâneo a pouco mais de 100 metros de profundidade, algo auspicioso para o lugar.

Os ventos continuaram a se mostrar favoráveis a Donald Hess nessa sua empreitada em Salta. Enquanto esperava que as vinhas de El Arenal começassem a produzir, a crise econômica de 2001 na Argentina afundou Raúl Dávalos em dívidas, obrigando-o a se desfazer de Colomé. O suíço foi mais esperto que outros interessados, conseguindo comprar a propriedade que, afinal, havia sido o motivo maior para se fixar na região.

Mostrando-se merecedor da graça divina, Hess investiu pesado na área vitivinícola - foi erguida uma nova e bem montada bodega, novos vinhedos foram implantados e os antigos recuperados, e foi construída uma central hidrelétrica (até então a Colomé funcionava à base de gerador) - e, com decisiva participação da mulher, Ursula, em obras sociais para os moradores do povoado. A(s) cereja(s) do bolo, para fazer daquele canto seu paraíso, foi a construção de um pequeno e luxuoso hotel com nove apartamentos - hoje aberto só para convidados ou para grupos fechados - e, em seguida, no meio dos vinhedos, de um museu com cerca de 1.800 m2 com obras (incríveis) do artista americano James Turrell, desenhado pelo próprio.

Tanto capricho ficaria sem sentido se não fosse acompanhado de uma preocupação com a preservação do entorno. Nesse aspecto, há em Colomé uma grande preocupação em conduzir tudo de forma autossustentável, o que, em termos de vinho implica não usar qualquer produto químico nos vinhedos. Essas práticas foram levadas ainda mais além, com o trabalho nas vinhas sendo conduzido dentro dos preceitos biodinâmicos. Essa área, a propósito, tem a mão Ursula Hess.

A proposta vinícola de Donald Hess na Argentina foi completada com dois outros projetos, o Amalaya, em Cafayate, mais ao sul, com rótulos de preços mais acessíveis, e o Altura Máxima, composto de um vinhedo de 24 hectares situado a 3.100 metros de altitude - "os mais altos do mundo" - na zona de Payogasta, pouco distante da Finca El Arenal.

Fonte: Canal do Produtor

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