Meio Ambiente

Precisamos falar sobre a água

Transposição entre bacias, políticas de uso racional, investimento para redução das perdas, dessalinização e outras frentes deveriam, todas, ser pensadas em conjunto


Publicado em: 22/09/2014 às 17:40hs

Precisamos falar sobre a água

O mundo está seco. Para beber água, é preciso recorrer ao mercado negro. Banho, só com água controlada. Nas ruas, ladrões, qual viciados em becos, ficam na surdina, à espera de um transeunte descuidado ou de um deslize do entregador, que leva o líquido de casa em casa, em tambores. O cenário é de "The Sand Storm" (ou "A Tempestade de Areia"), curta-metragem de ficção científica lançado no início do mês pelo diretor Jason Wishnow (da série "TED Talks", criada pela organização TED, de bastante sucesso na internet). O nome mais famoso do enxuto elenco - são apenas quatro personagens - é o artista-ativista chinês Ai Weiwei, que faz sua estreia como ator. O curta-metragem foi filmado em segredo em Pequim, e no elenco estava um artista que já havia sido preso mais de uma vez por suas posições políticas. Se as condições para produzir o filme parecem improváveis, o que surge na tela parece não uma obra de ficção, mas de premonição. Um mundo árido e impessoal já não soa assim tão inverossímil. Será que entramos, de vez, na era da escassez de água?

A ênfase dada por pesquisas e relatórios a um potencial cenário de catástrofe não põe com todas as letras o ponto de partida da discussão: a água não vai acabar. O que não significa que o sinal de alerta não tenha razão de existir. São Paulo, maior metrópole da América do Sul, é muito o resultado do trabalho de migrantes nordestinos que mudaram para a cidade para fugir de incontáveis secas no Nordeste. Agora, quem sofre com a iminente (ou, em alguns casos, já presente) falta d'água é a cidade que acolheu incontáveis filhos da seca.

Superpovoada, crescendo a esmo e, em paralelo, enfrentando um período inédito de falta de chuvas, a cidade mais rica do país mostrou nos últimos meses um risco real: a água pode não se esgotar no mundo, mas pode chegar às pessoas cada vez com mais dificuldade. E é com esse problema que o Brasil tem que começar a lidar. "Temos bons instrumentos, uma boa lei [das águas], elogiada internacionalmente, mas nos perdemos nos processos", diz Carlos Eduardo Morelli Tucci, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Feevale e referência internacional em pesquisas sobre recursos hídricos. "É preciso ação, e isso significa que os projetos não podem mudar a cada quatro anos. Nós somos muito governo e pouco Estado. Nossos projetos têm que ser de longo prazo, seja qual for o governo."

O sistema Cantareira, maior responsável pelo abastecimento de água da Grande São Paulo, baixou nesta semana para 8,9% de sua capacidade. Isso exigiu que, pela segunda vez em quatro meses, a Sabesp, empresa de saneamento básico do Estado, solicitasse à Agência Nacional de Águas (ANA) a autorização para utilizar a água da reserva técnica do sistema (o "volume morto"). A medida é de emergência e por isso mesmo não pode ser repetida indefinidamente. Uma solução já apontada pelos especialistas é a interligação do Cantareira com outros sistemas que abastecem a região metropolitana. O governador Geraldo Alckmin anunciou em março o projeto de transposição das águas do rio Jaguari - e o plano pôs em vivas cores um dos gargalos do sistema hídrico brasileiro: os entes da Federação nem sempre se entendem quando o assunto é água. O rio é afluente do Paraíba do Sul, que abastece o Estado do Rio.

O governo fluminense argumentou que a obra poderia afetar o abastecimento no Rio - e o projeto virou uma disputa jurídica entre os dois Estados. "O Brasil tem uma dificuldade prática: há rios estaduais e rios federais. Isso dificulta o papel da União de arbitrar", diz Benedito Braga, presidente do Conselho Mundial da Água e uma das maiores autoridades do assunto no país. Nos estaduais, são os órgãos do governo do Estado que decidem a política para o rio. Nos federais, que passam por mais de um Estado, a tarefa cabe à União.

Em momentos de crise de abastecimento, como o que São Paulo vive, percebe-se as dificuldades para o planejamento de longo prazo, como a interligação de bacias. Mas os imbróglios federativos não são empecilho para outros esforços. Hoje, 37,5% da água que entra no sistema de abastecimento do país se perde por causa de desperdício, falhas no sistema, como vazamentos, ou ligações clandestinas. Está longe do nível que seria considerado aceitável, em torno de 20%, e muito distante do desempenho de países como o Japão, onde as perdas ficam entre 5% e 10%. "Estamos na era da eficiência, de fazer mais coisas com menos recursos", diz Gertjan Beekman, coordenador de recursos naturais e mudanças climáticas do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Iica). "Racionalizar o uso da água é tarefa da indústria, da agricultura, mas também de pessoas comuns. Sem isso, vamos ter que buscar a água cada vez mais longe - e ela vai ficar cada vez mais cara."

O Brasil tem 13% das reservas de água doce do mundo. Essa aparente abundância é uma das causas, segundo os especialistas, da dificuldade de fazer vingar programas de uso racional. Mas a distribuição não é uniforme. Cerca de 70% das reservas ficam na Amazônia, o que torna seu uso inviável para os centros mais populosos. A captação relativamente fácil - no Brasil 47% dos municípios são abastecidos por águas de superfície, número que supera os abastecidos por águas subterrâneas, que somam 39%, segundo a Agência Nacional de Águas - também foi um certo desestímulo para o investimento em tecnologias alternativas de abastecimento. "Nunca se pensou a sério em projeto de dessalinização no Brasil", diz Beekman. "Só o que há são pequenas usinas, que abastecem populações reduzidas. Mas os custos do processo caíram muito. Usinas de dessalinização poderiam reforçar o abastecimento de grandes cidades litorâneas."

A Espanha é um exemplo internacional de desenvolvimento dessa tecnologia. O norte do país, com chuvas abundantes e clima temperado, não costuma ter problemas de abastecimento de água, mas o Centro e o Sul são secos. Isso fez surgir projetos de dessalinização a partir dos anos 70. Os investimentos previstos devem elevar para 11% a fatia que a água dessalinizada tem do total do consumo do país até 2025. Em 2007, a fatia era de 1%. Em regiões mais secas, como a da Andaluzia, a média de chuvas é de 440 mm por ano. No semiárido brasileiro, a média é de 600 mm.

Plantação de algodão em Barreiras (BA)

Transposição entre bacias, políticas de uso racional, investimento para redução das perdas, dessalinização e outras frentes deveriam, todas, ser pensadas em conjunto, mas parecem ganhar urgência apenas em momentos de crise, como o que São Paulo enfrenta hoje. Não que ao país faltem instrumentos para fazer boas políticas. A Lei Geral de Águas, de 1997, é tida como uma lei avançada e chegou a inspirar a criação de legislações semelhantes em outros países, como a África do Sul. A ANA, agência responsável pelo controle e avaliação da Política Nacional de Recursos Hídricos, tem técnicos de alto nível, segundo observadores externos. Mas não há unanimidade sobre todas as ferramentas do arcabouço que compõe a gestão dos recursos hídricos.

Um dos instrumentos que são alvo de controvérsia são os chamados comitês de bacias. Formados por representantes da indústria, do agronegócio, de organizações não governamentais, da academia e dos demais entes que têm algo a dizer sobre o destino a ser dado à água de uma região, os comitês são os responsáveis, ao menos em tese, por orientar o que será feito com a água de uma bacia. Mas esse é um trabalho técnico, e nem todos os representantes têm a qualificação necessária para enriquecer as discussões. "A qualidade da representação dos comitês precisa melhorar", afirma Percy Soares Neto, coordenador da Rede de Recursos Hídricos da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

A entidade criou um programa de qualificação para preparar os representantes da indústria para os comitês que estão sendo criados. "Sem densidade técnica, um plano de bacia vira apenas ideológico." E há críticas mais enfáticas. "O comitê de bacias funciona como uma happy hour: as pessoas comparecem, resolvem todos os problemas do mundo, vão para casa - e tudo continua exatamente como estava antes", diz o professor Carlos Tucci, ganhador, em 2011, do International Hydrology Prize, entregue todo ano pela Unesco, braço da Organização das Nações Unidas para questões ligadas a educação, ciência e cultura.

Tão infrutífera quanto a discussão exclusivamente ideológica do tema é aquela movida por forças eminentemente eleitorais. A crise de abastecimento de água em São Paulo coincidiu com ano de eleição para governadores e presidente da República, o que tornou esse um tema central na campanha no maior colégio eleitoral do país. A lista de propostas do governador Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, é encabeçada pela promessa de ampliar a capacidade de reserva de água das bacias mais sujeitas aos impactos da falta de chuva. Não é que se tenha detectado agora essa necessidade - e sim porque ela virou pedra nas mãos dos adversários.

Em resposta ao Valor por meio de sua assessoria de imprensa, Paulo Skaf (PMDB), o adversário de Alckmin mais bem colocado nas pesquisas, ressalta que o Estado "passa por uma grave crise hídrica por absoluta falta de investimento" (embora Alckmin enfatize, por sua vez, que a Sabesp investiu R$ 9,3 bilhões na expansão da infraestrutura de abastecimento na Grande São Paulo). O Plano Diretor de Aproveitamento dos Recursos Hídricos da Macrometrópole, aprovado em 2013 e com custo estimado entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões, aumentaria em 100% a disponibilidade de água para a Grande São Paulo, diz Skaf. "Não tem mistério", afirma o candidato. "É pegar esse plano e executar as obras." Como se vê, em eleição, projetos caros e complexos viram cifras na ponta da língua de um candidato e são simples na versão do outro.

Projetos de água e saneamento não são simples e certamente não são baratos, mas muito mais caro é deixar de fazê-los. "Temos o desafio de ter água de qualidade, e não apenas quantidade", diz Dan Bena, diretor de desenvolvimento sustentável da PepsiCo, que virá ao Brasil na semana que vem para o Arq.Futuro, fórum de especialistas que vai debater a relação das grandes metrópoles com a água (ver entrevista na página 9). Estima-se que, para cada US$ 1 investido em projetos de saneamento, o Estado economiza entre US$ 5 e US$ 10 em saúde pública. "Se a decisão de investir não for por convicção, que seja pelos números. Essa é uma questão aritmética: investir em água e saneamento gera economia em saúde", diz Gertjan Beekman, do Iica.

Há, porém, outra aritmética, e muitas vezes é para ela que os mandatários olham: o tratamento de água é mais barato que o de esgoto. Entre um e outro, investe-se na água - e o esgoto muitas vezes fica sem destino. Não é casual o fato de 45% dos municípios do país não terem rede de esgoto, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "É por isso que em algumas cidades pode-se dizer que há água disponível - mas não pergunte o que tem dentro dela", afirma Beekman.

É a aritmética que compõe também o argumento dos representantes do setor que mais consome água: o agropecuário. Segundo estudo elaborado pela equipe econômica da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o valor bruto da produção do agronegócio brasileiro cresceria 426% se as áreas dedicadas à agricultura fossem totalmente irrigadas. "Irrigação aumenta a produtividade, e isso reduz a pressão por novas áreas de plantio", diz Nelson Ananias Filho, assessor da Comissão Nacional de Meio Ambiente da CNA. Se há ou não ressalvas ao argumento, ele está na rua - e limitar o debate a poucas frases feitas ou restringi-lo ao período eleitoral só tende a limitar as tentativas de solução.

Planejamento abre caminhos para um país melhor, mas, no imaginário nacional, é obra que ganha eleição. Talvez resida aí a dificuldade de manter incólumes os planos de longo prazo. A capital do país é um epítome dessa característica. Quando foi construída, Brasília foi projetada para ter 500 mil habitantes. À medida que crescesse, versava o plano, ela ganharia uma represa, a de São Bartolomeu, planejada para um vale na parte sul do Distrito Federal. A capital federal cresceu desordenadamente e hoje, com suas cidades-satélite, tem 2,6 milhões de habitantes. Mesmo que tenha ficado muito mais cheia do que o que sonharam os arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, Brasília não ganhou a barragem adicional. Não havia como: no local em que a São Bartolomeu seria erguida, brotaram casas e condomínios. Em um culto ao abandono de um planejamento, eis a ironia: parte desses condomínios compõe hoje a região de maior concentração de casas com piscina do país.

 

Fonte: Canal do Produtor

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